quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Encerramento


Venho por meio desta informar que estou encerrando meu projeto de crônicas e contos, por motivação de um projeto literário maior, a ser mencionado a seu tempo. Ademais, pretendo neste ano de 2014 transformar o material dos blogs em um LIVRO DE CRÔNICAS E CONTOS. Desde já, conto com seu apoio neste projeto. Foram dois anos de dedicação e canalização da verve, com o resultado de cerca de CINQUENTA MIL LEITURAS, de diversos países, algo que eu JAMAIS imaginaria atingir. Agradeço a cada leitura, a cada curtida, a cada comentário, a cada compartilhada; também agradeço ao pessoal do Jornal Tradição por meio da Claudia Duarte, que tantas crônicas minhas publicou; também agradeço ao pessoal do Comunica Sls, por meio primeiramente da Aline Cunha e posteriormente do Henrique Schnorr Krüger, que com sensibilidade me convidaram e me oportunizaram de escrever crônicas para o site; e também agradeço, é claro, à Deus, que com suas mãos de ventríloquo me orientou nesta empreitada pelos bons-ventos da inspiração. Dividido neste momento entre a alegria de um projeto bem-sucedido e a nostalgia de um ciclo que se encerra, subscrevo-me. Segue abaixo os links dos três blogs, cujos conteúdos deixarei disponíveis por mais um tempo. Fiquem à vontade em passear por eles.


Um grande abraço, e até breve.

Cordialmente,

Danilo Kuhn

Crônicas Afônicas:http://blogdascronicasafonicas.blogspot.com.br/;

Contos Recônditos:http://blogdoscontosreconditos.blogspot.com.br/;

Crônicas Lourencianas:http://blogdascronicaslourencianas.blogspot.com.br/.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Um conto de verão


A areia do tempo escorria na beira da praia, entrecortada por vento e ondas. Trazia nos lábios um gosto amargo de maresia e solidão, e um olhar perdido no revoar das gaivotas. Sabia que não tinha muito tempo de vida, apenas o tempo de uma lembrança. Já fazia vinte anos daquele verão donde o amor acenava, que a saudade afastava da visão a cada grão de areia escorrido na ampulheta da memória.
– O mar é a crônica da vida – certa vez me disse Maria.
Minhas pegadas à beira-mar vão-se apagando aos poucos. Umas são fugazes, sucumbem num segundo à onda e à espuma. Outras, o vento encobre lentamente com areia, metaforseando-as grão a grão, até fundi-la à Grande Praia. Quem poderá repisar meu rastro? Quem seguirá meus passos? As lembranças da minha passagem pelo mundo são apenas pegadas na areia da praia.
– O mar é a crônica da vida – certa vez me disse Maria.
A imensidão do mar aberto nesse fim de tarde frio e deserto me apequena, ou melhor, me faz lembrar minha pequenez. Por maiores que desejemos ser, no fim das contas não passamos de grão de areia, de gota d’água. Meus gritos são abafados pelas gaivotas, pelo vento, pelo vazio. Até mesmo minha solidão se encolhe diante da imensidão. Por mais pessoas que passem por nossas vidas, chega o momento de nos encontrarmos sós, para o derradeiro ajuste de contas consigo mesmo.
– O mar é a crônica da vida – certa vez me disse Maria.
A noite se aproxima, e eu, já sem rumo, vejo uma luz. Em meu devaneio, não resta mais nada, somente aquela luz. Todo o resto é nada. A escuridão me sufoca, desatina, pesa meus passos, rarefaz o ar. A maresia se engrossa e me põe sal na boca. Meu desespero se exaspera. Já não caminho, rastejo. Não me resta esperança, somente a luz. A luz. E ali, no Farol, eu me encontro. E descubro que a vida é tudo isso. É caminhar eterno em direção à luz, ao Farol.
– O mar é a crônica da vida – certa vez me disse Maria.


(Danilo Kuhn)


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Calou-se o canto da vida

Os olhos da pampa (histórias gaúchas)

Calou-se o canto da vida

Sabiá, sem bem saber por que, não cantou mais. Talvez, assim como eu, sente tua falta. Sem seu canto, e teu encanto, ficaram tristes e silentes as manhãs, já não se ouve a sua flauta... E eu, que só sabia assobiar tua canção... Desde então calamos, eu e o sabiá...
“Sabiá, triste flautista, desiludiu de ser artista”.

***

Até mesmo o Bem-te-vi, que encantava a tua chegada, por não ver-te mais por aqui, foi cantar noutra morada. E eu, que quando bem te vi, me senti um passarinho... De repente a solidão no meu peito fez seu ninho... E nunca mais eu bem te vi, nem a ti nem ao Bem-te-vi...
“Bem-te-vi não te viu mais, e eu nunca mais bem te vi”.

***

João-de-barro, meu vizinho, também perdido da companheira, deixou seu rancho sozinho e foi morar noutra porteira... E eu que, feito ele, ergui do barro minha morada... Que tristeza, ele bem sabe, ver o amor deixar a casa...
“Quando o amor bate asas, se faz tapera a casa”.

***

Beija-flor, por desamor, nunca mais fez outro ninho e nem foi mais de flor em flor, ferido à ponta de espinho. Desde quando foste embora, falta a mais bela da flora...
“Sou Girassol sem sol, Beija-flor sem flor”.

***

Os quero-queros, posteiros, de tanto te querer bem, foram pra outros potreiros pra não querer mais ninguém. E tudo em volta entristeceu depois da tua partida... O pago emudeceu, calou-se o canto da vida.
“Quero-quero, sem querer, também quis meu bem-querer. E tu? Ah, e tu! Tu, mal-me-queres”.


(Danilo Kuhn)



quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Quando a Milonga amanhece

Os olhos da pampa (histórias gaúchas)

Quando a Milonga amanhece

A Milonga, em sua aurora, abre as cortinas da noite despacito, como quem pega uma estrada. Vislumbra a pampa da janela do horizonte, com suas planuras dormidas, seus veios de prata, sangas mansas, prelúdios silentes do amanhecer.
– Bom dia, Pampa Estrelada! É da vontade de Pai Celeste que me quede aí, sobre teu seio, derrame meu ouro sobre ti, desperte as matas, as coxilhas, a várzea, o campo. Me permites? Te peço licença, Pampa Estrelada.
– Buenas, Milonga! Benvinda sejas. Te aprochega, dedilha teus acordes, bordoneia a barra do dia, enquanto reponto minhas estrelas...
E a Milonga amanhece tão sonora e luzidia! Rege coros de pássaros, alvoroça a criação, aquenta a água do mate enquanto se infiltra pelas frestas dos ranchos. Como se fosse uma prece, a Milonga abençoa as sesmarias...
– Milonga do Amanhecer, traz, pra alma, claridade...

***

A Milonga, já desperta, num instante se faz dia. É quero-quero em alerta no topo de uma coxilha. O sol que nasce na pampa chega na hora do mate, e ao compasso milongueiro empeça a lida, de braços fortes e rédea firme. A Milonga ponteia o alambrado, solfeja melodias por entre as folhas do mato, milongueia as horas...
– Milonga do Amanhecer, traz, pra alma, lenidade...

***

A Milonga, em plenitude, é o dia que se prolonga, estendendo os braços à querência num abraço fraternal. Há, no espelho do açude, distraída, uma milonga...
– Milonga do Amanhecer, traz, pra alma, serenidade...


(Danilo Kuhn)


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Um romance em estiagem

Os olhos da pampa (histórias gaúchas)

Um romance em estiagem

Era um tempo difícil. A vida cá na campanha andava puída, sisuda. Terra-rachada. E o coração era uma cacimba esperando água da chuva. Minh’alma-tapera, lambendo as feridas, já não via vida além do portão, trancada em solidão.
Numa tarde mormacenta, dessas de vento pesado e morno, encilhei o pingo malacara, já na rapa do tacho, na capa da gaita, e me fui bebendo estrada, tragando distâncias, entre nuvens de poeira. Eis que, perdido, vagando na paisagem, me fitava um par de olhos castanhos, feito mel de mirim, ou prenúncio de temporal... Chuvarada na campanha!
Alamaula! Foi-se embora a estiagem!
E “dê-lhe boca pro gateado”! Na porteira da fazenda, o meu peito descobriu que o olhar daquela prenda era de inundar estio! O coração se foi torrente abaixo, redemoinho, nas corredeiras do rio... E o amor se fez enchente neste peito cansado, carcomido e vazio.

***

No entanto, tamanho encanto, do mel ao fel, num instante se desfez... Alapucha! Quem güenta o tirão? Quem segura o repuxo? O rio tornou-se pranto e, de tristeza, me afoguei... Já sem forças pra nadar.
A prenda tempo-feio se fez viração. Aquela de olhos castanhos não me deu seu coração e eu, aos poucos, fui secando... Minguando... Vi meus olhos secarem, rasos d’água... Gota a gota... Lua a lua.
Me fui voltando pras casa, à galope, sem olhar pra trás, no meu pingo, que o sol forte e inclemente da campanha já levou em seu estio. Escafedeu-se a última gota de esperança. A última rota gota. Joguei o balde cacimba abaixo, e cortei a corda. Desta água já não bebo. Me atirei no poço de um copo de canha cristalina.
Ainda lembro daquela desdita, da porteira da fazenda, dos espinhos, das corredeiras no rio e do olhar daquela prenda, que era de inundar estio, e de estiar qualquer peão...
Hoje, apenas vago, solito pelas paragens, bebendo a vida, remoendo a solidão de um romance em estiagem que secou meu coração.


(Danilo Kuhn)


terça-feira, 13 de agosto de 2013

Uma flor de lírio branco

Os olhos da pampa (histórias gaúchas)

Uma flor de lírio branco
  
Naquele fundo de campo, onde tua mirada não alcança, num rancho de barro e madeira floresceu um lírio branco. O encanto desta flor, assim que a primavera se boleia, enfeita a velha tapera, antigo ninho de amor.
Foi neste abrigo campeiro, forjado a facho de lua, que Ana Clara, branca como a lua, teve o seu amor primeiro.
– Vosmecê é uma flor de lírio branco – disse o negro, e ela trocou léguas de campo por um poncho de lã crua.
Conta o negro mais antigo que um peão da fazenda tinha os encantos da prenda, num romance proibido. A filha do fazendeiro, de tanto cerzir a vida sem amor, entregou-se de corpo e alma àqueles braços fortes como o angico e negros como a noite.
Mas, na fúria de um temporal, por vingança, honra lavada, veio a morte encomendada pelas mãos frias do mal.
– Mate os dois, Olhos de Cobra. Lhe pago uma guaiaca cheia de cobres, e uma noite com duas negras –, encomendou o fazendeiro, cuspindo as palavras. Os olhos de cobra do matador de ascenderam.
Naquele fundo de campo, onde tua mirada não alcança, resta o rancho em ruína, a cruz perdida e, ao lado, enternecida, uma flor de lírio branco.
– Vosmecê é uma flor de lírio branco – disse a noite, e Ana Clara trocou léguas de campo por um poncho de lã crua.

(Danilo Kuhn)


sábado, 13 de julho de 2013

O mendigo de leitores


Todo dia ele escrevia. Em cada palavra sua alma se esvaía, cristalina, ávida do brilho dos olhos de seus leitores.
Todo dia ele escrevia. Em meio a rotina, ao trabalho - que não requeria letras -, garimpava pepitas de tempo literário. Literalmente, no fundo da mina escura do dia-a-dia, procurava o ouro do sol em prosa e verso.
Todo dia ele escrevia, e se realizava. Sorria ao ver-se traduzido em palavras. Seus escritos eram seu espelho. Sua cabeça fervilhava ao reconhecer em cada réstia de mundo a inspiração divina, sôfrego por revelá-la a quem não podia vê-la ou senti-la.
Todo dia ele escrevia, e era lido. Isto o satisfazia ainda mais que escrever: ter leitores. Pensava que quando ninguém mais o lesse, poderia encerrar suas atividades neste mundo, um trágico ponto final na própria existência, um personagem a menos no livro não lido da vida. Mas ele preferia as reticências... A continuidade... A exclamação! Até a dúvida, ou uma vírgula, os dois pontos e travessão. Aprazia-lhe o diálogo. Quando leitores o elogiavam, comentavam seus escritos, ou até o criticavam, se sentia vivo. O silêncio o matava, aos poucos, pausa a pausa.
Todo dia ele escrevia, mas lentamente foi se transformando num mendigo. Ele trabalhava, ganhava dinheiro, se alimentava razoavelmente bem (muito bem até, em se tratando de um escritor)... Era sua alma que empobrecia e definhava. Flagrou-se rastejando por atenção, pedindo esmolas sob forma de leituras. E foi assim que ele se tornou um mendigo de leitores.
Todo dia ele escrevia, e mendigava:
- Deus! A leitura nossa de cada dia nos dai hoje!


(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 17 de junho de 2013

Bruna olhos-de-bruma

Bom dia – disse a ela, sob a manhã de estanho que ainda se espreguiçava no céu.
– Bom dia – murmurou, sem me olhar nos olhos.
Noutros tempos, baixaria a cabeça e seguiria meu caminho, mas havia algo na névoa matinal que me levava a ir além, a desvelar cada esquina, a descobrir cada rosto, a desvendar cada gesto.
– Esta névoa deixa as ruas mais interessantes, não é mesmo?
– Ah, sim. É muito interessante não sabermos quem está a nos seguir, nem em que rua estamos, nem se há alguém por perto para socorrer.
Sua voz era uma lâmina frágil que procurava afiar-se em palavras de pedra, mas com o devido cuidado para não quebrar-se. Estava intimidada com minha presença e insistência em puxar conversa, mas não pôde evitar olhar-me, atraída pelas minhas palavras vaporosas.
Como uma aranha que pensa em atrair a presa, teci uma frase para que a prendesse em minha teia:
– O que é a vida senão o mistério do destino entre-brumas?
Ela, que até então não diminuíra o passo, pousou os saltos sobre a calçada coberta de névoa líquida e me indagou com os olhos. Era um olhar perolado tão misterioso e brilhante quanto a bruma, que não consegui domar meus lábios:
– Você tem olhos de bruma.
– E você deve ter névoa dentro da cabeça em lugar de cérebro.
Era a primeira vez que havia juntado coragem para falar com Bruna, e minhas palavras vãs fundiram-se à névoa e ao eco dos seus passos que se afastavam até que não restasse nada além dos seus olhos a me envolver. Os olhos de bruma de Bruna me perseguem desde então.

***

      Coincidência ou não, na semana que se seguiu a névoa não deu trégua. O sol era uma pérola esmaecida a vagar sobre o véu que cobria o céu. E, quando anoitecia, as luzes dos postes ganhavam uma aura pálida e amarelada que lambia alguns poucos metros do nevoeiro, num arremedo solar.
      – Boa noite – falou-me a névoa, com voz macia.
      Virei-me e reconheci aqueles olhos de bruma. Bruna vestia um casaco sóbrio e de bom corte, mas pude adivinhar as curvas de colo e quadril.
      – Desculpe-me a pressa daquela manhã. Eu andava um tanto confusa. Meu nome é Bruna.
      – Bruna olhos-de-bruma – improvisei, compondo um sorriso, me arrependendo em seguida de tamanha falta de bom-gosto. – Eu sou o Cabeça-nas-nuvens.
      Bruna me presenteou com um sorriso luzidio como a aurora, e abaixou a guarda. Mas em vez de utilizar-me de anzóis vazios e artifícios sem cor, entreguei-me aos seus olhos e os deixei me guiar. Andamos por entre as nuvens de uma cidade sem rosto, ríamos a cada passo em falso quando se terminavam as calçadas sem aviso prévio, pregávamos peças nos caminhantes chamando-os de entre a névoa, até adivinharmos nossas mãos em nossas mãos, nossos lábios em nossos lábios. Olhei-me em seus olhos de bruma. Eu me sentia nas nuvens.

(Danilo Kuhn)




sexta-feira, 10 de maio de 2013

O sábio e o aventureiro


Dentro de mim há um sábio e um aventureiro.
O sábio é um velho teórico do saber, estudioso do conhecimento humano, filósofo das leis divinas. Traz consigo a sapiência de quem já muito estudou, autoridade de quem já muito produziu, a altivez de quem já muito longe chegou, o cansaço de quem já muito trabalhou, a amargura de quem já muito pensou, a desesperança de quem já muito esperou, a desilusão de quem já muito sofreu. Guarda em seu baú verdades absolutas, sólidos ideais. É um solitário, crítico, ácido, radical, avesso ao diálogo, abstrato, contemplativo do mundo das ideias e das teorias, dono de vasto patrimônio, e traz consigo uma tonelada de chumbo nas costas: o fardo do conhecimento. Quando eu começo a pensar, a escrever, o velho fala por mim. Não preciso de esforço para que o pensamento aporte onde necessito, para que as palavras se encaixem, para que as relações entre as ideias se estabeleçam da forma que preciso. Ele é o reflexo de existências e existências anteriores onde eu me afoguei em livros, em tratados, em reflexões, nas masmorras do estudo. E ele caminha sempre comigo, e por vezes fala mais alto que tudo, que só ouço a sua voz.
O aventureiro é um jovem extrovertido e curioso, alegre e brincalhão, com sede de vida. Este rapaz quer a compensação de vidas e vidas dedicadas ao conhecimento dos livros, e exige viver com intensidade o aqui e agora. O velho é antissocial, ermitão, e não relativiza opiniões e conceitos e não faz escolhas porque as escolhas já estão feitas, preestabelecidas, são dogmas: é um absolutista do pensamento. Já o jovem quer se relacionar, ser popular, quer conhecer outras formas de compreensão do mundo e da vida que não são as suas, que herdou do velho. Quer ter liberdade, quer ter liberdade de escolha. Precisa, na verdade, aprender a fazer suas próprias escolhas, aprender com a vida, não com os livros. Acredita no diálogo, no conhecimento que se dá a partir do encontro entre dois. Quer aprender a ouvir as pessoas, quer a expansão da sua compreensão e relativizar opiniões, trazendo consigo a necessidade de conhecer muitas pessoas, outras culturas, de viajar o mundo, de estar em relação com o outro, com os outros. O aprendizado está no encontro com o outro. Se no mundo do velho não há espaço para escolhas, no mundo do jovem a escolha está em suas mãos. Ele acredita na escola do diálogo e da escolha, na negociação. Presta atenção com quem está falando e precisa se fazer entender, saber transmitir, do jeito que o outro entenda. Quer dar aulas, palestrar, exigir minha atenção ao outro.
Não é fácil equilibrar estes dois dentro de mim. Mas sei que é aí que reside o meu aperfeiçoamento, o meu aprimoramento. O jovem aventureiro é a compensação que a Evolução me exige em confronto com o velho sábio. Sou volátil, por vezes disperso, mutável, inconstante, efeitos colaterais das lutas internas que travam o sábio e o aventureiro, do enfrentamento, do confronto.
Admiro muito o velho sábio. Sou o eu do ontem. Meu legado. Mas pretendo me parecer cada vez mais com o jovem aventureiro, porque até mesmo um sábio precisa ampliar seus horizontes, sair da masmorra, pôr em xeque suas leis, suas certezas, conhecer o mundo, as coisas mundanas, e, principalmente, o outro.
É difícil. Difícil o aventureiro fazer escolhas porque não está acostumado com isso, não tem ninguém, nenhum postulado que lhe indique o caminho certo, como teve no passado: o caminho certo, agora, é para onde aponta o seu nariz. É difícil o sábio deixar para trás sua fé, reescrever seus pergaminhos, abandonar seus mapas, desdizer suas teses, mudar seu norte, reorientar sua bússola. Mas até as estrelas no céu mudam, se movimentam. E é isto que elas estão me exigindo. Reinventar o velho, abrir as portas para o novo.
Dentro de mim há um velho sábio e um jovem aventureiro, e eles estão caminhando pela estrada da minha existência em direção ao diálogo, ao equilíbrio, à unificação, à Evolução.

(Danilo Kuhn)



quarta-feira, 17 de abril de 2013

Ovelha não é pra mato


Enquanto Ovelha, ele estava acostumado a seguir o rebanho, a obedecer ao Pastor. E Pastor pastoreava habilmente, quase sem fazer-se notar; movia seu cajado como se movem as estrelas no céu, que em seu feitiço são imóveis.
Mas Ovelha não se contentava com tão pouco, tampouco se sentia parte do rebanho, não se reconhecia em seus semelhantes. Sempre que contava seus sonhos a amigos ou familiares, ouvia um sonoro, Ovelha não é pra mato, que ficava ecoando em seus pensamentos ovinos. Não queria ser castrado, tolhido, privado, cerceado, pastoreado.
Então, a ovelha negra da família desgarrou-se. Pôde ser seu próprio pastor. Ovelha ganhou o mundo. Desbravou a mata virgem do amor, subiu as íngremes montanhas do reconhecimento, bebeu da água pura da amizade, mas também provou os dissabores da vida e seus métodos de ensino eficazes, porém, dolorosos.
Na cidade, Ovelha esperava respirar os primeiros ares da liberdade, mas teve uma desagradável surpresa. Em vez de pessoas, reconheceu ovelhas vestindo todas as mesmas roupas, frequentando os mesmos lugares, escutando as mesmas músicas, reproduzindo comportamentos, obedecendo às ordens do cajado de seus pastores. Os rebanhos eram vários, mas todos iguais em sua essência pastoril. A cidade era um imenso campo habitado por ovelhas em pastoreio. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade.
Mas assim como Ovelha, pra seu alento, havia outros. Poucos, é verdade, mas havia. E numa madrugada fria e embriagada, Ovelha conheceu o amor. Foi um encantamento. Ele descobriu-se feliz pela primeira vez. Completo. Onde foi aquele vazio que o incomodava, o impulsionava, o jogava pra frente, o fazia seguir adiante? Ele agora apenas queria enraizar-se. No entanto, não demorou muito pra que Ovelha se sentisse pastoreado novamente. O amor que lhe prendia era a nova forma do cajado do seu antigo pastor. O amor é um pastor mais nobre, mas é um pastor, pensava ele. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor.
Foi então que Ovelha abandou o rebanho mais uma vez, se deu asas, e voou rumo às montanhas íngremes e traiçoeiras do reconhecimento. Nesta subida, o ar ia se tornando cada vez mais rarefeito, a respiração mais difícil, qualquer erro poderia ser fatal à medida que quanto mais alto se está, maior a queda. Mas ele queria o topo. E chegou lá. Sua liberdade era invejável. Sua persistência, sua fé, sua força de vontade, seu trabalho. Mas ao conquistar o reconhecimento dos outros, Ovelha já não mais se reconhecia. Ser pastor de si mesmo não nos torna o nosso próprio rebanho? Ovelha sentiu-se só. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor. Nem pra solidão das montanhas.
Já cansado, Ovelha resolveu descer, ainda sem saber pra onde ir. Em sua descida triste, prestou mais atenção à paisagem, ao caminho percorrido, às gentes à beira da estrada, e amizades começou a fazer. Os amigos eram de toda a espécie, cada um com seu jeito, e Ovelha com o seu. Aos poucos o seu círculo de amizade foi aumentando, e a tensão entre os amigos também. Discussões pontiagudas se erguiam após críticas ácidas ou opiniões incomuns que Ovelha insistia em promover em um chá da tarde, ou num happy hour. Numa certa noite, Ovelha estava a ponto de convencer seus convidados de sua visão de mundo, quando de repente lhe ocorreu que suas palavras haviam se transformado num cajado, ele, num pastor, seus amigos, no seu rebanho. Sentiu asco de seu novo papel, deixou o discurso inacabado e encerrou a reunião sem mais. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor. Nem pra solidão das montanhas. Mas muito menos pra pastor de rebanho.
Todos nós somos ovelha e pastor, rebanho e cajado. Ser dócil; ter a iniciativa. Ouvir a voz de comando do coração; fazer o próprio destino. Encontrar o equilíbrio, eis o mistério da vida.

(Danilo Kuhn)