Enquanto Ovelha, ele estava acostumado a seguir o rebanho, a
obedecer ao Pastor. E Pastor pastoreava habilmente, quase sem fazer-se notar;
movia seu cajado como se movem as estrelas no céu, que em seu feitiço são
imóveis.
Mas Ovelha não se contentava com tão pouco, tampouco se sentia
parte do rebanho, não se reconhecia em seus semelhantes. Sempre que contava
seus sonhos a amigos ou familiares, ouvia um sonoro, Ovelha não é pra mato, que
ficava ecoando em seus pensamentos ovinos. Não queria ser castrado, tolhido,
privado, cerceado, pastoreado.
Então, a ovelha negra da família desgarrou-se. Pôde ser seu
próprio pastor. Ovelha ganhou o mundo. Desbravou a mata virgem do amor, subiu
as íngremes montanhas do reconhecimento, bebeu da água pura da amizade, mas
também provou os dissabores da vida e seus métodos de ensino eficazes, porém,
dolorosos.
Na cidade, Ovelha esperava respirar os primeiros ares da
liberdade, mas teve uma desagradável surpresa. Em vez de pessoas, reconheceu
ovelhas vestindo todas as mesmas roupas, frequentando os mesmos lugares,
escutando as mesmas músicas, reproduzindo comportamentos, obedecendo às ordens
do cajado de seus pastores. Os rebanhos eram vários, mas todos iguais em sua
essência pastoril. A cidade era um imenso campo habitado por ovelhas em
pastoreio. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade.
Mas assim como Ovelha, pra seu alento, havia outros. Poucos, é
verdade, mas havia. E numa madrugada fria e embriagada, Ovelha conheceu o amor.
Foi um encantamento. Ele descobriu-se feliz pela primeira vez. Completo. Onde
foi aquele vazio que o incomodava, o impulsionava, o jogava pra frente, o fazia
seguir adiante? Ele agora apenas queria enraizar-se. No entanto, não demorou
muito pra que Ovelha se sentisse pastoreado novamente. O amor que lhe prendia
era a nova forma do cajado do seu antigo pastor. O amor é um pastor mais nobre,
mas é um pastor, pensava ele. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o
amor.
Foi então que Ovelha abandou o rebanho mais uma vez, se deu
asas, e voou rumo às montanhas íngremes e traiçoeiras do reconhecimento. Nesta
subida, o ar ia se tornando cada vez mais rarefeito, a respiração mais difícil,
qualquer erro poderia ser fatal à medida que quanto mais alto se está, maior a
queda. Mas ele queria o topo. E chegou lá. Sua liberdade era invejável. Sua
persistência, sua fé, sua força de vontade, seu trabalho. Mas ao conquistar o
reconhecimento dos outros, Ovelha já não mais se reconhecia. Ser pastor de si
mesmo não nos torna o nosso próprio rebanho? Ovelha sentiu-se só. Ovelha não é
pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor. Nem pra solidão das montanhas.
Já cansado, Ovelha resolveu descer, ainda sem saber pra onde ir.
Em sua descida triste, prestou mais atenção à paisagem, ao caminho percorrido,
às gentes à beira da estrada, e amizades começou a fazer. Os amigos eram de
toda a espécie, cada um com seu jeito, e Ovelha com o seu. Aos poucos o seu
círculo de amizade foi aumentando, e a tensão entre os amigos também.
Discussões pontiagudas se erguiam após críticas ácidas ou opiniões incomuns que
Ovelha insistia em promover em um chá da tarde, ou num happy hour. Numa certa
noite, Ovelha estava a ponto de convencer seus convidados de sua visão de
mundo, quando de repente lhe ocorreu que suas palavras haviam se transformado
num cajado, ele, num pastor, seus amigos, no seu rebanho. Sentiu asco de seu
novo papel, deixou o discurso inacabado e encerrou a reunião sem mais. Ovelha
não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor. Nem pra solidão das montanhas.
Mas muito menos pra pastor de rebanho.
Todos nós somos ovelha e pastor, rebanho e cajado. Ser dócil;
ter a iniciativa. Ouvir a voz de comando do coração; fazer o próprio destino.
Encontrar o equilíbrio, eis o mistério da vida.
(Danilo Kuhn)
Boa crônica Danilo...deu uma boa reflexão...parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado Mara! Abraço!
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