quarta-feira, 17 de abril de 2013

Ovelha não é pra mato


Enquanto Ovelha, ele estava acostumado a seguir o rebanho, a obedecer ao Pastor. E Pastor pastoreava habilmente, quase sem fazer-se notar; movia seu cajado como se movem as estrelas no céu, que em seu feitiço são imóveis.
Mas Ovelha não se contentava com tão pouco, tampouco se sentia parte do rebanho, não se reconhecia em seus semelhantes. Sempre que contava seus sonhos a amigos ou familiares, ouvia um sonoro, Ovelha não é pra mato, que ficava ecoando em seus pensamentos ovinos. Não queria ser castrado, tolhido, privado, cerceado, pastoreado.
Então, a ovelha negra da família desgarrou-se. Pôde ser seu próprio pastor. Ovelha ganhou o mundo. Desbravou a mata virgem do amor, subiu as íngremes montanhas do reconhecimento, bebeu da água pura da amizade, mas também provou os dissabores da vida e seus métodos de ensino eficazes, porém, dolorosos.
Na cidade, Ovelha esperava respirar os primeiros ares da liberdade, mas teve uma desagradável surpresa. Em vez de pessoas, reconheceu ovelhas vestindo todas as mesmas roupas, frequentando os mesmos lugares, escutando as mesmas músicas, reproduzindo comportamentos, obedecendo às ordens do cajado de seus pastores. Os rebanhos eram vários, mas todos iguais em sua essência pastoril. A cidade era um imenso campo habitado por ovelhas em pastoreio. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade.
Mas assim como Ovelha, pra seu alento, havia outros. Poucos, é verdade, mas havia. E numa madrugada fria e embriagada, Ovelha conheceu o amor. Foi um encantamento. Ele descobriu-se feliz pela primeira vez. Completo. Onde foi aquele vazio que o incomodava, o impulsionava, o jogava pra frente, o fazia seguir adiante? Ele agora apenas queria enraizar-se. No entanto, não demorou muito pra que Ovelha se sentisse pastoreado novamente. O amor que lhe prendia era a nova forma do cajado do seu antigo pastor. O amor é um pastor mais nobre, mas é um pastor, pensava ele. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor.
Foi então que Ovelha abandou o rebanho mais uma vez, se deu asas, e voou rumo às montanhas íngremes e traiçoeiras do reconhecimento. Nesta subida, o ar ia se tornando cada vez mais rarefeito, a respiração mais difícil, qualquer erro poderia ser fatal à medida que quanto mais alto se está, maior a queda. Mas ele queria o topo. E chegou lá. Sua liberdade era invejável. Sua persistência, sua fé, sua força de vontade, seu trabalho. Mas ao conquistar o reconhecimento dos outros, Ovelha já não mais se reconhecia. Ser pastor de si mesmo não nos torna o nosso próprio rebanho? Ovelha sentiu-se só. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor. Nem pra solidão das montanhas.
Já cansado, Ovelha resolveu descer, ainda sem saber pra onde ir. Em sua descida triste, prestou mais atenção à paisagem, ao caminho percorrido, às gentes à beira da estrada, e amizades começou a fazer. Os amigos eram de toda a espécie, cada um com seu jeito, e Ovelha com o seu. Aos poucos o seu círculo de amizade foi aumentando, e a tensão entre os amigos também. Discussões pontiagudas se erguiam após críticas ácidas ou opiniões incomuns que Ovelha insistia em promover em um chá da tarde, ou num happy hour. Numa certa noite, Ovelha estava a ponto de convencer seus convidados de sua visão de mundo, quando de repente lhe ocorreu que suas palavras haviam se transformado num cajado, ele, num pastor, seus amigos, no seu rebanho. Sentiu asco de seu novo papel, deixou o discurso inacabado e encerrou a reunião sem mais. Ovelha não é pra mato. Nem pra cidade. Nem pra o amor. Nem pra solidão das montanhas. Mas muito menos pra pastor de rebanho.
Todos nós somos ovelha e pastor, rebanho e cajado. Ser dócil; ter a iniciativa. Ouvir a voz de comando do coração; fazer o próprio destino. Encontrar o equilíbrio, eis o mistério da vida.

(Danilo Kuhn)