O anjo era uma luz azul celeste envolta em bruma que pairava no
meu quarto, acordando-me suavemente com seu perfume de sândalo e camélia,
emanando em sua voz de algodão notas de alecrim e hortelã. Falava pausada e
docemente, deixando ouvir, entre palavra e outra, cançonetas oriundas das
alturas interpretadas a arpas, violinos e violoncelos. Não disse seu nome, mas
pacienciosamente falou-me sobre a criação do mundo e o seu criador,
incumbindo-me de propagar tais revelações à humanidade. Perguntei-lhe,
assustado, Por que eu, e ele disse-me, Ora... foste o escolhido por Ele para tal pois
assim é Sua vontade, que tu, homem simples como a brisa, de verbo luzidio como
a aurora e coração puro como a água, o faça, e assim, tão somente os homens de
mesma índole tua acolherão a Verdade em seus corações, separando o joio do
trigo... Assenti, atônito, enquanto o anjo prosseguiu. O Criador, como o nome
delata, é o Artista, e como tal, em Seus recônditos, ansiava por Sua obra-prima,
a obra através da qual Seu nome fosse para sempre lembrado, tornando-O imortal,
sempiterno, onipotente, onipresente. No começo... era apenas luz, criatividade
condensada, e o resto, um imenso e retumbante nada, o limbo, o que não existe...
Aos poucos o Criador criou a Si mesmo, autodidata Primeiro, inspiração Maior.
Sua capacidade infinita de invenção era avessa ao nada, e decidiu, em febril
atividade criativa, dar início a Sua obra colossal. Jogou um balde de tinta
negra à tela em branco, em seguida pontilhou-a de centelhas divinas. De Sua luz eterna forjou o astro sol, incansável tocha flamejante a aquecer e a iluminar.
Mas uma estrela em especial Lhe chamou a atenção... Era azul e espelhada... Ao
contemplá-la, pois, o Criador pode ver-Se pela primeira vez no espelho, e
decidiu criar o homem à Sua imagem e semelhança. Seria o Seu filho...
Neste momento do discurso angelical, uma lágrima rolou em sua
tenra face, a qual eu apenas podia adivinhar entre o estranho efeito de luz e
bruma sobre a tez alva. Mas a lágrima luzia tanto que me trouxe à tona do
estado absorto no qual me encontrava. Fiz menção de interrompê-lo,
perguntar-lhe o porquê do choro incontido, mas a resposta me veio do meu
coração: cria-se os filhos para o mundo, não para si, e suas atitudes, por
vezes, nos decepcionam.
Percebendo minha pequena dispersão, e engolindo o choro, o anjo
retomou palavra, com a voz embargada disfarçada pela aura alegre que a trilha
sonora celeste retomara, após alguns acordes dramáticos. Foi então que Ele
pintou o mundo, com Seus pincéis de luz, Sua aquarela de amor... Bordou cada
estrela da noite, cada pirilampo. Teceu cada relva. Pincelou a aurora e o
crepúsculo. Esculpiu cada montanha, cada árvore. Soprou cada brisa. Escreveu
cada rio. Desenhou cada nuvem. Cantou cada nota. Brotou cada flor. E por fim,
ergueu do barro o homem as demais criaturas... No entanto, ao ver ali a Sua
obra-prima acabada, inerte, sem movimento próprio, sem música, sem poesia, sem
perfume, o Criador decidiu dar ao Seu mundo, à Sua obra, vida própria e livre-arbítrio.
Desta forma, as águas, os ventos, os homens e as criaturas andaram por si sós... Desde
então, Ele não cessa de concertar os erros dos filhos... O homem virou-Lhe as
costas. Nada dói tanto quanto o desamor filial! Mas o Pai sempre zela por Seu
filho, sempre... Então, para a reaproximação, fez a fé. Para saudade, fez a
esperança. Para a solidão, fez o amor e a amizade. Para a violência, fez a
tolerância e o bom-exemplo. Para a preguiça, fez o trabalho. Para toda e qualquer
injustiça dos homens, fez a Divina Providência. Para a fome do corpo, fez o
pão. Para a fome da alma, fez a arte. Nada de ruim acontece senão para dar
exemplo. Toda provação é um degrau para o merecimento. A riqueza é uma
provação, a pobreza também. A beleza é uma provação, a falta de o é da mesma
forma. A liberdade, inclusive, também é uma provação, assim como a escravidão! Deus sabe
como concertar cada filho... mas enquanto eles não acreditarem que vivem para
melhorar a si mesmos e ao mundo, não conseguirão encontrar o caminho de volta
para casa, não ascenderão novamente até ao Pai. Diz isto aos teus irmãos, ó
homem! O Pai espera por vocês! Todo aquele que tiver Deus no coração, e procurar
através de sua obra colocá-Lo no coração do próximo, sentará à mesa farta com o
Pai! Semeia o trigo...! Semeia o trigo...
Ficou apenas o eco vago das últimas palavras angelicais, e o
aroma da tônica final da música celeste. A luz azul apagou-se. A bruma
desfez-se. E no quarto já escuro e silente eu despertei sem saber se o que vi e
ouvi e senti havia ou não sido um sonho. Seria eu capaz de sonhar estas
palavras? Este cenário? Esta Verdade?
Quando o coração se ilumina, tudo se revela.
(Danilo Kuhn)