quinta-feira, 14 de março de 2013

Revelação


O anjo era uma luz azul celeste envolta em bruma que pairava no meu quarto, acordando-me suavemente com seu perfume de sândalo e camélia, emanando em sua voz de algodão notas de alecrim e hortelã. Falava pausada e docemente, deixando ouvir, entre palavra e outra, cançonetas oriundas das alturas interpretadas a arpas, violinos e violoncelos. Não disse seu nome, mas pacienciosamente falou-me sobre a criação do mundo e o seu criador, incumbindo-me de propagar tais revelações à humanidade. Perguntei-lhe, assustado, Por que eu, e ele disse-me, Ora... foste o escolhido por Ele para tal pois assim é Sua vontade, que tu, homem simples como a brisa, de verbo luzidio como a aurora e coração puro como a água, o faça, e assim, tão somente os homens de mesma índole tua acolherão a Verdade em seus corações, separando o joio do trigo... Assenti, atônito, enquanto o anjo prosseguiu. O Criador, como o nome delata, é o Artista, e como tal, em Seus recônditos, ansiava por Sua obra-prima, a obra através da qual Seu nome fosse para sempre lembrado, tornando-O imortal, sempiterno, onipotente, onipresente. No começo... era apenas luz, criatividade condensada, e o resto, um imenso e retumbante nada, o limbo, o que não existe... Aos poucos o Criador criou a Si mesmo, autodidata Primeiro, inspiração Maior. Sua capacidade infinita de invenção era avessa ao nada, e decidiu, em febril atividade criativa, dar início a Sua obra colossal. Jogou um balde de tinta negra à tela em branco, em seguida pontilhou-a de centelhas divinas. De Sua luz eterna forjou o astro sol, incansável tocha flamejante a aquecer e a iluminar. Mas uma estrela em especial Lhe chamou a atenção... Era azul e espelhada... Ao contemplá-la, pois, o Criador pode ver-Se pela primeira vez no espelho, e decidiu criar o homem à Sua imagem e semelhança. Seria o Seu filho...
Neste momento do discurso angelical, uma lágrima rolou em sua tenra face, a qual eu apenas podia adivinhar entre o estranho efeito de luz e bruma sobre a tez alva. Mas a lágrima luzia tanto que me trouxe à tona do estado absorto no qual me encontrava. Fiz menção de interrompê-lo, perguntar-lhe o porquê do choro incontido, mas a resposta me veio do meu coração: cria-se os filhos para o mundo, não para si, e suas atitudes, por vezes, nos decepcionam.
Percebendo minha pequena dispersão, e engolindo o choro, o anjo retomou palavra, com a voz embargada disfarçada pela aura alegre que a trilha sonora celeste retomara, após alguns acordes dramáticos. Foi então que Ele pintou o mundo, com Seus pincéis de luz, Sua aquarela de amor... Bordou cada estrela da noite, cada pirilampo. Teceu cada relva. Pincelou a aurora e o crepúsculo. Esculpiu cada montanha, cada árvore. Soprou cada brisa. Escreveu cada rio. Desenhou cada nuvem. Cantou cada nota. Brotou cada flor. E por fim, ergueu do barro o homem as demais criaturas... No entanto, ao ver ali a Sua obra-prima acabada, inerte, sem movimento próprio, sem música, sem poesia, sem perfume, o Criador decidiu dar ao Seu mundo, à Sua obra, vida própria e livre-arbítrio. Desta forma, as águas, os ventos, os homens e as criaturas andaram por si sós... Desde então, Ele não cessa de concertar os erros dos filhos... O homem virou-Lhe as costas. Nada dói tanto quanto o desamor filial! Mas o Pai sempre zela por Seu filho, sempre... Então, para a reaproximação, fez a fé. Para saudade, fez a esperança. Para a solidão, fez o amor e a amizade. Para a violência, fez a tolerância e o bom-exemplo. Para a preguiça, fez o trabalho. Para toda e qualquer injustiça dos homens, fez a Divina Providência. Para a fome do corpo, fez o pão. Para a fome da alma, fez a arte. Nada de ruim acontece senão para dar exemplo. Toda provação é um degrau para o merecimento. A riqueza é uma provação, a pobreza também. A beleza é uma provação, a falta de o é da mesma forma. A liberdade, inclusive, também é uma provação, assim como a escravidão! Deus sabe como concertar cada filho... mas enquanto eles não acreditarem que vivem para melhorar a si mesmos e ao mundo, não conseguirão encontrar o caminho de volta para casa, não ascenderão novamente até ao Pai. Diz isto aos teus irmãos, ó homem! O Pai espera por vocês! Todo aquele que tiver Deus no coração, e procurar através de sua obra colocá-Lo no coração do próximo, sentará à mesa farta com o Pai! Semeia o trigo...! Semeia o trigo...
Ficou apenas o eco vago das últimas palavras angelicais, e o aroma da tônica final da música celeste. A luz azul apagou-se. A bruma desfez-se. E no quarto já escuro e silente eu despertei sem saber se o que vi e ouvi e senti havia ou não sido um sonho. Seria eu capaz de sonhar estas palavras? Este cenário? Esta Verdade?
Quando o coração se ilumina, tudo se revela.

(Danilo Kuhn)